domingo, 16 de maio de 2010

American Psycho - Mary Harron

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"I got a business card 'cause I wanna win some lunches! That's what my business card says: Mitch Hedberg, Potential Lunch Winner. Gimme a call, maybe we'll have some lunch. If I'm lucky!" - Mitch Hedberg.

Essa piada foi a primeira coisa que começou a vir na minha cabeça quando eu percebi que o aspecto mais interessante da psicopatia de Patrick Bateman era a apreciação deveras doentia pelo cartão de negócios dos outros. O resto do filme foi só uma desculpa para pensar em como poderia ser a cena da prisão do Patrick, num diálogo legendado.

***

[entrando numa sala da firma Pierce & Pierce, onde Patrick Bateman está sozinho, escutando Huey Lewis num walkmen paleolítico, com um semblante entre puramente aristocrático e aparentemente constipado]

- Senhor Patrick Bateman? Oficial O.
- Sim, oficial. Sou eu.
- Senhor Patrick Bateman, você está preso pela morte de Mitch Hedberg. Você tem direito a um advogado. Você tem direito a permanecer calado. Tudo que disser poderá e será usado contra você no tribunal. Você vai resistir e me obrigar a fazer uma cena bem no meio do escritório, senhor Bateman, bem no meio dos seus colegas de trabalho, ou eu posso contar com a sua cooperação, senhor Bateman?
- Oficial, não há necessidade dessa loucura prosseguir. Fique com essas algemas. Ninguém na firma precisa equivocadamente pensar que eu estou sendo preso por alguma coisa.
- Foi o que eu pensei, senhor Bateman, foi o que eu pensei.
- Agora, oficial, o senhor poderia me fazer a gentileza de dizer do que o senhor está falando, para que eu possa esclarecer qualquer desentendido? Queira se sentar, oficial.
- Estou falando do assassinato de Mitch Hedberg, senhor Bateman. Estou falando do sangue pelo qual o senhor pagará.
- Espere um segundo. Você está dizendo que eu matei Mitch quem?
- Mitchell Lee Hedberg, trinta e sete anos. Caucasiano. Humorista. Lembre-se que o senhor pode ficar calado, senhor Bateman. Se quiser, o senhor pode me acompanhar discretamente ao Departamento, e falar apenas na presença do seu advogado. Eu devo lhe informar, senhor Bateman, que eu prestarei testemunho de tudo que está acontecendo aqui, e qualquer impertinência que o senhor falar eu sei obrigado a colocar no relatório.
- Oficial, eu insisto em conversar. Posso pedir alguma coisa para você enquanto isso? Qualquer coisa. Não será incômodo algum.
- Obrigado, senhor Bateman, estou bem.
- Oficial, deve ter havido algum engano. Com base em quê eu estou sendo acusado dessa coisa ridícula?
- Poupe suas palavras, senhor Bateman. Aos jurados é que você vai ter que mostrar quem você é.
- Oficial, eu realmente não entendo o porquê dessa nossa conversa ter que sair dos limites da mais absoluta cortesia. Vamos, oficial, fale comigo.
- Isso não é uma das suas operações de mercado, senhor Bateman. O senhor não poderá me convencer a comprar ações a preços inacreditáveis, com retorno garantido.
- Por favor, oficial, eu só quero esclarecer tudo. O senhor compreenderá a minha situação...
- Quem não compreenderá jamais a sua situação, senhor Bateman, é Mitch Hedberg!
- Mitch Hedberg, esse nome não me é estranho. Eu deveria reconhecê-lo por algum motivo?
- Este nome não lhe é estranho? Você diz que esse nome não lhe é estranho? Senhor Bateman, este nome está escrito por toda a sua cara hidratada junto à palavra assassinato.
- Será que você poderia me dizer quem é esse sujeito, oficial.
- Eu acredito que o senhor vá se lembrar de Mitch Hedberg não como um dos seus amigos de Wall Street, não é mesmo, senhor Bateman? Não como um dos frequentadores dos seus clubes e nem como um figurão dos negócios. Mas, diga-me, senhor Bateman, você e Mitch Hedberg não tinham um amigo em comum no lado oeste? Um amigo que lhes fornecia as suas preciosas gramas das suas preciosas substâncias? Não estou certo, senhor Bateman? O senhor não comprava as drogas que animavam as suas noites de esbórnia de Dick Jumper, do lado oeste?
- Eu não sei do que o senhor está falando, oficial. Eu realmente não sei. Eu sou um respeitado homem de negócios.
- Oh, senhor Bateman, os seus negócios, os seus negócios. Claro, eu andei levantando a sua ficha. Graduado em Harvard, no topo da sua classe. Nunca precisou se preocupar com um emprego, não é mesmo, senhor Bateman. Com um histórico desses e com apenas uma pequena ajuda do Senhor Bateman Sênior, como diabos o pequeno Patrick se tornaria qualquer outra coisa que não um jovem bem-sucedido na sua carreira...
- Se você deseja me fazer sentir culpado por alguma coisa, oficial, é melhor não escolher o fato de que eu nasci numa família rica. O que separa homens como eu de homens como Mitch Hedberg é muito mais do que dinheiro, oficial: é uma coisa chamada instinto natural.
- Você chama de instinto natural esquartejar um indivíduo sem piedade? Eu chamo isso de estupidez, senhor Bateman, se você fizer isso e então deixar o cadáver num nem tão escondido assim depósito em Hell's Kitchen.
- Você não tem nenhuma prova.
- Ah, mas eu tenho, senhor Bateman, eu tenho. Aquele corpo decompondo em Hell's Kitchen, você o botou lá na noite de 29 de setembro, não foi, senhor Bateman? Para o seu azar, o cafetão da senhorita Laura Jules, ou, como o senhor prefere chamá-la, Christie, é um sujeito muito organizado com agenda de suas garotas.
- Você não está dizendo a verdade, oficial.
- E tudo por causa de um cartão.
- Aquele maldito mereceu!
- O que foi, senhor Bateman, nunca tinha visto uma desculpa tão vulgar para que um homem tivesse um cartão de negócios ou foi a a vulgaridade do próprio cartão, com aquela fonte ordinária e naquele papel simplório, que lhe fez querer matar Hitch Hedberg?
- Bem, oficial, eu devo confessar que a alta incidência de cadáveres sendo deixados em Hell's Ktichen, embora um fato inteiramente natural naquele lugar impossivelmente sórdido, é também um resultado, modesto é verdade, das minhas singelas contribuições na requintada arte do homicídio. Você sabe, eu não consigo disciplinar este ardente ímpeto em apagar as provas dos meus crimes, de modo a me beneficiar de uma doce impunidade. Oficial, eu não consigo imaginar que ser colocado na prisão irá aumentar as minhas chances de conseguir uma reserva numa mesa decente do Dorsia's.
- Senhor Bateman, o senhor ainda não tem condições de saber disso, já que ainda estamos no início dos anos 90, mas eu me tornarei uma pessoa capaz de fazer coisas que o senhor não conseguir uma reserva numa mesa decente do Dorsia's vai ser o menor, o menos angustiante dos seus problemas. Espere por um filme chamado o Paciente Inglês, senhor Bateman, e então o senhor verá do que eu sou capaz de fazer.
- Mas você não é e não poderia ser Willem Dafoe, oficial. Ele era um simples detetive particular. O papel dele é completamente incompatível com esse desfecho, artisticamente -- e eu enfatizo a palavra artisticamente.
- Senhor Bateman, a pessoa que escreveu isso nunca teve a menor ideia de onde ela iria chegar.

sábado, 15 de maio de 2010

Um punhado de pó - Evelyn Waugh


Eu acho que nem o fato deste livro ter sido escrito no século XX, sobre o século XX, serve para invalidar a afirmação de que os ingleses superam qualquer povo quando o assunto é pragmatismo -- inclusive quando se trata das suas mulheres e das relações extraconjugais que elas possam se divertir tendo. Comparando com o que eu conheço de livros dedicados ao assunto, Brenda Last foi a mulher que menos trabalho teve para descobrir que ela poderia, sem com isto fazer o mundo colapsar, quebrar o voto da fidelidade matrimonial. Emma Bovary, Anna Karenina, a Luísa não sei lá o quê do Primo Basílio, essas pobres não sabiam o que estavam fazendo. Elas se torturaram antes, durante e depois que o mal estava feito; tinham surtos de miséria. Quando não estavam ocupadas temendo o escândalo ou a possibilidade de serem separadas de seus filhos, estavam ocupadas tentando resistir, de início, às investidas dos cavalheiros que se apresentavam como candidatos a amantes. Brenda Last nem isso precisou fazer. Dos tipos no fundo mesquinhos e frívolos que os escritores criam para surgir na vida dessas mulheres (e digo no fundo porque eles sempre aparecem heróis no começo), John Beaver terá sido, dos que eu conheço, o mais deplorável e patético. Ele próprio se via assim. Ele próprio reconhecia que aproveitar o melhor da sociedade londrina era algo que ele só poderia fazer quando as migalhas lhe fossem atiradas de última hora, quando as mesas das festas precisassem ser preenchidas por alguém que não fizesse questão de ser razoavelmente antecipadamente notificado. Com a naturalidade de um serviçal ele ia atendendo aos convites e com a naturalidade de um serviçal ele acatou aos comandos do espírito emulativo de Brenda Last.

Também extremamente pragmático, por sua vez, Anthony Last recuperou, no final, alguns pontos que ele havia perdido como parte ofendida no triângulo amoroso. Eu literalmente vibrei, dando uns socos no ar, quando ele se levantou do restaurante e disse ao cunhado em quais termos ele iria reagir à tentativa de coerção que este último estava fazendo em nome da irmã traidora. Depois de se abandonar a John Beaver, que era um sujeito ridículo, Brenda ainda queria que Last pagasse uma pensão suficiente à sobrevivência fausta do futuro casal, porque Beaver, além de ridículo, era pobre e não trabalhava. O irmão dela havia se intrometido nessa briga e havia se encarregado de tornar real essa pretensão. Num almoço num clube ele e Last discutiram a situação. A Last foi proposto o pagamento de uma pensão exorbitante, sob a ameaça de que numa ação judicial a condenação seria conseguida: provas de um flagrante que o próprio Last tinha montado, contra ele mesmo, para favorecer Brenda, seriam usadas. Finalmente enraivecido com o caso, Last responde que não irá aceitar o acordo. Aproveita para dizer que as provas do flagrante serão devidamente desconsideradas no tribunal e que ele não vai dar nenhum tostão a quem quer que seja. Ali ele ganhou o meu respeito e me fez pensar em algum jogador de videogame que estivesse sofrendo uma pressão qualquer em algum jogo de disputa, e que num único momento conseguisse vencer o adversário, repentinamente, brutalmente, com um combo mirabolante e insano ou com um habilidoso headshot. Até então sendo provocado, ele largaria o controle do videogame como Anthony se levantou da mesa, desdenhando, e como Anthony saiu do restaurante, altivo, iria à cozinha e voltaria com um pacote de Pringles e um copo de Coca-Cola -- urrando alguns impropérios na cara do perdedor, relembrando cada detalhe de como foi sensacional a sua vitória e recusando-se a jogar uma nova partida para todo o sempre.

Na conta das lembranças prosaicas ficou, ainda, o teste de fidelidade do João Kléber. Num dado momento eu questionei o libertário que eu pensava existir dentro de mim, e eu senti que se eu estivesse sendo observado por uma plateia, muitos poderiam considerarar a minha conduta como sendo indiscreta. Imaginem, foi isso que eu fiz, que vocês tivessem atravessado o Atlântico numa pequena embarcação. Imaginem que vocês tivessem entrado nessa embarcação com um pouco mais do que um tênue senso de que vocês precisariam sair da Inglaterra a qualquer custo, e que uma expedição para a fronteira da Guiana Holandesa com o Brasil tivesse sido uma tola opção que, feita antes, agora vocês já não mais conseguissem evitar. Pois bem. Atravessado o Atlântico; feito o tresloucado desembarque no império dos mosquitos; contratada a suspeitíssima escolta dos índios macuxi para a condução até a terra dos índios vapixianas; caminhados, por fim, desorientadamente, quase os trezentos quilômetros de distância do trajeto; feito tudo isso, digamos que uma febre misteriosa lhe acometesse e que a única pesssoa branca que estava com você tivesse caído de uma cachoeira e desaparecido. Digamos que os índios macuxi tivessem abandonado a expedição com o medo de um rato de brinquedo comprado em Munique, e que, tendo sido deixado sozinho no meio da floresta amazônica, alguém aparecesse e lhe resgatasse. E agora vem o dilema: se essa pessoa, cuidando da sua enfermidade e te tratando com todos os recursos dela, tentasse impedir que você fizesse o caminho de volta pela floresta, e, ao contrário, te obrigasse a ficar lendo Charles Dickens todo dia, o que você faria? Foi esse o dilema. De um lado, toda a bibliografia de Charles Dickens à sua disposição. De outro lado, circunstâncias que não eram toda a bibliografia de Charles Dickens à sua disposição, entre elas a necessidade de sobreviver na floresta, passando o tempo sobrevivendo na floresta, sem ler toda a bibliografia de Charles Dickens. Até que ponto eu prezo a liberdade de só ler toda a bibliografia de Charles Dickens quando isso for a minha vontade? Que tipo de pessoa eu sou, foi o que eu me perguntei, inclonclusivamente.


A tradução deste livro foi feita pelo Diogo Mainardi, do que eu tomei conhecimento com felicidade. Um detalhe irrelevante que me fez gastar uns bons minutos pensando foi que ele decidiu não colocar um ponto depois dos pronomes de tratamento. Mr Last, Mrs Last. Mr Beaver. Mr Grant-Menzies. É assim que os nomes aparecem escritos. Se está certo ou não, se terá sido uma simples repetição do padrão encontrado no original, isso eu não sei. Os minutos que eu gastei pensando não se converteram em pesquisas gramaticais ou em consultas ao Google Books. Foram apenas minutos que eu gastei olhando para o teto em contemplação, num oblívio nirvânico, às vezes voltando algumas páginas e conferindo se o livro inteiro estava daquela maneira.

A minha cena predileta, que eu vou transcrever em parte mais abaixo, foi a do delírio febril do Tony Last. E isso exige que eu me explique, porque ter gostado dessa cena contrariou uma longa tradição que eu tenho respeitado ao longo da minha vida consciente. Cenas de delírio ou de sonho, desde Brás Cubas e desde uma vez em que um colega meu achou apropriado me contar um sonho que ele teve, no qual ele era Alex Kid, nunca são, pra mim, a melhor parte de uma leitura ou de uma conversa. Não chego nem a abrir uma exceção para os filmes do David Lynch porque nesse caso o critério falha na premissa, eu raramente tendo condições de saber e distinguir quais são as cena do sonho e quais são os poucos fragmentos reais e temporalmente lógicos. Mas o que me fez gostar da cena de delírio do Anthony Last foi como ela praticamente não descreveu colorações plúmbeas no céu, nem ruídos assustadores vindos do chão, nem essas coisas disformes e enfadonhas que costumam aparecer nessas horas. A cena do Anthony Last foi eminentemente narrativa, quase feita só de pessoas pronunciando palavras. Só para mostrar como o estilo é bom eu não preciso explicar todas as alusões aos eventos da história, eu acho, de modo que assim eu termino este post:

- Ordem - disse Polly Cockpurse. Proponho que Mr Last faça uso da palavra.
- Atenção, atenção.
- Senhoras e senhores - disse Tony. - Rogo-lhes que entendam que eu não posso sair dessa rede por estar doente. Dr Messinger passou instruções claríssimas a esse respeito.
- Winnie quer nadar.
- Não é permitido nadar no Brasil. Não é permitido nadar no Brasil.
A reunião assumiu o brado.
- Não é permitido nadar no Brasil.
- Mas você tomou dois cafés da manhã.
- Ordem - disse o prefeito. - Lord St Cloud, sugiro que o senhor leve a questão à votação.
- A questão é se o contrato para o alargamento do ângulo de Hetton Cross deve ser concedido a Mrs Beaver. De todos os orçamentos recebidos, o dela decididamente foi o mais caro, mas fui informado de que seu projeto inclui um muro de metal cromado na face sul da aldeia...
- ... e dois cafés da manhã - lembrou Winnie.
- ... e dois cafés da manhã para os homens encarregados do trabalho. Aqueles a favor da moção devem cacarejar como galinhas e aqueles que são contrários devem dizer au-au.
- Esse é um procedimento inteiramente impróprio - disse Reggie. - O que os empregados vão pensar?
- Precisamos fazer algo até que Brenda seja avisada.
- ... Eu? Eu estou bem.
- Então considero aprovada a moção.
- Estou muito contente que Mrs Beaver tenha conseguido o serviço - disse Brenda. - Estou apaixonada por John Beaver, estou apaixonada por John Beaver, estou apaixonada por John Beaver.
- É essa a decisão do comitê?
- Sim, ela está apaixonada por John Beaver.
- Então a moção foi aprovada por unanimidade.
- Não - disse Winnie. - Ele tomou dois cafés da manhã.
- ... por maioria absoluta.

Taking Woodstock - Ang Lee


Acho que é justo dizer que Taking Woodstock é menos um filme sobre os bastidores do festival hippie, menos até um filme sobre a família disfuncional do sujeito que ofereceu aos organizadores do festival hippie a sua licença municipal originalmente obtida para a apresentação de um quarteto de cordas, e mais um filme sobre a lama que ficou espalhada pela estradas e pelas encostas, sujando todos que passavam. Exagero, naturalmente, mas o que interessa afirmar é que um filme sobre bagunça não é um filme que precisa ser ruim.

Este que aparece no centro da foto, aliás, é mesmo o Demetri Martin. Ele é o sujeito da licença municipal. É o sujeito que sacrifica as ambições da sua vida pessoal para se isolar numa cidadezinha onde seus pais têm o que só pode ser o hotel/cassino/centro de bar mitzvah mais bagunçado dos registros. No meio dos hippies e dos judeus osso duro de roer, uns mais e outros menos mercantilistas bem-sucedidos do que se poderia imaginar, ele é um elemento fora do lugar. Dá para se lembrar dos sketches do Important Things, o Demetri Martin como um inepto social, quando ele caminha no meio da festa. Dá para se lembrar daqueles sketches, também, quando ele chega ao restaurante e o dono diz que não está disponível o prato usual que ele pede -- alguma coisa com bacon extra: "You're out of of the usual? Wow, that's unusual". Também quando a mãe dele exclama, aliviada ao ver o filho, que um cliente estava lhe ameaçando com um pedido de reembolso.

Um núcleo paralelo é o da companhia de teatro que está ficando no estábulo do hotel. Eu não conheço nenhuma companhia de teatro pessoalmente, mas conheço alguém que já esteve numa situação quase tão próxima a uma como a do personagem do filme, e sei que num caso desses, ou a pessoa mentaliza coisas absurdas e que distraem, preferencialmente com um fone no ouvido, ou então ela foge do lugar, na chuva.

Liev Schreiber está no elenco e eu acabei de me lembrar do primeiro filme que eu vi com ele, o que desde então tem servido como referência quando eu ouço esse nome: The Daytrippers.

domingo, 2 de maio de 2010

Inglourious Basterds - Quentin Tarantino


É mais fácil, eu imagino, alguém me recriminar por contar partes essenciais do filme, o que de fato eu faço linhas abaixo, do que me acusar de afeição ao nazismo, o que de forma alguma eu tenho. Mas eu faço questão de me escusar antecipadamente e de afirmar que o que eu direi de forma alguma teve a intenção de mostrar simpatia ao brutal regime totalitário. Gostei de um personagem - somente um personagem, veja-se -, partidário, e por isso eu aceitaria alguma reprimenda, se esta obra de ficção - obra de ficção, veja-se - não fosse, ela própria, uma forma de celebração da violência, naquilo que ela pode ter de engraçada. Sendo certo que a violência pode ser engraçada, em termos de cinema, mas também um ponto negativo no escore final da personalidade ou conduta de alguém, seria muito mais condenável simpatizar com o truculento personagem do Brad Pitt, por exemplo, do que meio que torcer - foi o que eu fiz - para o personagem do oficial nazista exótico. No final das contas eu simpatizei com o personagem do Brad Pitt e realmente meio que torci para o Coronel. Eu sabia que alguma coisa no roteiro justificaria a minha torcida e só posso pedir desculpas, bem sinceras, se alguém se ofender com isso -- com o fato de que eu talvez tenha ultrapassado o limite aceitável e que pode ser tolerado quando alguém vai falar de Segunda Guerra.

Dito isso, volto para o parágrafo que eu estava escrevendo.

Como diria Enéas, eu sou um sujeito de poucas luzes. Em matéria de filmes isso não é diferente. Não sou um bom entendedor de filmes, e muito menos expresso bem as poucas noções corretas que às vezes eu consigo formular sobre eles. O único momento de sorte que eu tive, e já enfatizo desde logo que se tratou de um momento de sorte mesmo, foi assistindo a Jogos Mortais. Na primeira cena do filme eu descobri quem era o assassino, porque o sujeito que estava deitado no porão, supostamente morto, não tinha uma fita no gravador. Isso era o que todo mundo tinha, e se aquele sujeito era diferente, iluminadamente eu concluí que ele era o matador. Acho que um momento de sorte parecido aconteceu com este Inglourious Basterds, embora em medida alguma ele possa ser atribuído a uma espécie de percepção que tenha tido, como no caso Jogos Mortais. O que aconteceu aqui foi a pura e natural empatia que eu tive por uma pessoa me levando a torcer, ao longo do filme, por alguém que iria acabar fazendo alguma coisa legal. Talvez esse episódio tenha sido menos raro do que a descoberta instantânea de quem era o assassino lá daquele outro filme. Acho mesmo que deliberadamente o Coronel Hans Landa foi criado de uma forma tal que nós gostássemos dele desde o primeiro momento. Foi o que aconteceu comigo, em todo caso. Gostei dele se esforçando para falar francês, dele pedindo leite e fingindo que não iria fuzilar aquela família. Acho que em toda a história do nazismo cinematográfico, só Schindler mesmo para não despertar o ódio instintivo e visceral. E ele nem era oficial. Mas Schindler e 0 Coronel Landa, eu acrescento. Não por acaso, mais tarde esse último emboscaria oficiais nazistas e permitiria a realização da fantasia maior que se você não adquiriu lendo livros de história, você adquiriu jogando Medal of Honor: metralhar nazistas encurralados.

Se vale alguma coisa, ou se alguma coisa mais precisa ser dita, o Frederick Zoller, que por um tempo poderia se passar por apenas um garoto alemão cumprindo as leis de seu país, se alistando no exército e sendo basicamente um soldado, dele eu não gostei de imediato. E não viria a gostar nunca. O motivo é o mesmo que Shossana diz, na cena do café, e efetivamente ninguém tem o direito de ser criança o suficiente para negar a sua pertinência: o sujeito representava o ocupador.

O que me levou a gostar do Coronel Landa, eu acho, foi um pouco do que se poderia chamar de Indicador Costanza. Estou tentando parar de ficar dizendo nomes neste post, mas o Indicador Costanza eu não não posso evitar, pois foi exatamente por causa dele que surgiu em mim a torcida de que eu tenho falado e que obviamente me incomodou um pouco (basta ver a minha verborrágica insistência em tratar dela). O Indicador Costanza, em resumo, se refere ao talento que o George uma vez declarou como sendo o único que ele tinha, o talento de dizer se alguém estava desconfortável numa festa. Para mim o Coronel Landa seria detectado pelo Indicador Costanza se em vez de uma festa nós estivéssemos falando de toda a movimentação beligerante na Europa. George diria que ele não estava muito à vontade com a coisa toda e foi pensando também isso que eu fiquei interessado em ver como ele iria se comportar. Soldados nazistas frequetemente são retratados em filmes nos seus conflitos de consciência, nos seus questionamentos e nas suas fraquezas perante a ordem totalitária. Não é disso, porém, que estou falando. Não é esse o que eu acho que seja o caso do Coronel. O desconforto que se percebe nele está nos seus próprios trejeitos, no modo como se senta e no modo como fala. Sempre ele espera pela final e inegável confirmação, da parte de um suspeito, quando ele está interrogando algum inimigo do Estado. Ele não se precipita, não força uma confissão. Que inseguro oficial nazista, por exemplo, tomaria o cuidado e teria a paciência de esperar a mulher suspeita de participar da chacina de soldados colocar o seu pé à prova num sapato que por acaso ficou largado na cena do crime? Só o Coronel. Só o Coronel, nessa ocasião, pediria para que ela estendesse a perna e ficaria dando tapinhas impacientes nas suas coxas.

Procurando alguma foto dele para colocar neste post, vejo a pletora de comentários e mesmo o anúncio que o Tarantino fez de que o Coronel é o melhor personagem que ele já escreveu. Quase me inclino a dizer que Stuntmam Mike é quem merece este título, mas falar isso não é algo que eu estou conseguindo fazer neste momento.


A Sociedade do Anel - J.R.R Tolkien/Peter Jackson

Ouço dizer, da boca de dois amigos que já leram o livro, que não é regra absoluta a pessoa tentar encontrar um ritmo para cantar as antigas canções que aparecem em verso. Eu não poderia ter ficado mais espantado com essa afirmação, pois achava que era justamente esta a coisa que me aproximava de todos os leitores que pelos tempos conheceram o livro: ficarmos, um pouco bobos, nos divertindo com as nossas tentativas de cantar as palavras numa determinada ordem musical que fosse correta e agradável aos ouvidos, como deve ser uma boa composição. Mas não. Eles me juraram que eles nunca tinham feito aquilo, quando eu perguntei se eles também ficavam quebrando a cabeça para encaixar as palavras numa melodia imaginária. Sustentaram que eu devo ser uma das poucas pessoas na história que se ocuparam disso, esquecendo-se até mesmo de ninguém menos que Peter Jackson, que colocou no filme uma cantoria etilicamente movida (logo no início, ainda no Condado), além de umas lamúrias cantaroladas ao redor da fogueira (Passolargo, sobre a guria que abandonou a imortalidade élfica pelo amor de um homem).

Tão irredutíveis eles se mostraram nesse ponto, vejam, que eu nem perguntei se eles não se imaginavam segurando enormes copos de cerveja, em tavernas pouco sanitárias e em madeiras lascadas, a gritaria geral desorganizada convergindo para um refrão conhecido toda vez que eu me levanto e, no limite da minha voz, faço uma exortação para que uma passagem já mil vezes repetida naquela noite seja mais uma vez repetida. E nego que estou severamente alcoolizado gritando ainda mais alto, e fazendo movimentos de regência com as minhas mãos, esvaziando o copo na minha boca. E digo familiarmente ao dono da taverna para trazer mais uma garrafa, antes de cair, ridículo, no chão.

Mais ou menos o que acontece no próprio filme, numa palavra. O que me fez lembrar deste antigo post do Pedro Sette-Câmara, que deixo como a explicação do enredo:


Samba-enredo do Senhor dos Anéis (seguindo a maneira de cantar dos puxadores, o leitor deve desconsiderar várias elisões)


Olha a União do Condado aí gente! Chora cavaco! Alô Terra Média!

Foi no reino de Mordor
que Sauron criou o anel
que espalhou tamanha dor
antes de se perder
Mas um dia – mas, um dia! –
quem não queria aventura
só viver na fantasia
conheceu toda a loucura
do anel e seu poder

Frodo (Frodo!)
Era um hobbit fascinante
de um paraíso distante
cheio de alegria e amor
Um belo dia descobriu
aquele anel do tio Bilbo
e foi assim que tudo começou

Refrão 2x

Vou salvar o mundo, eu vou
Acabar com o reino de Mordor
Destruir os orcs, sem temor
Agora a aventura me encontrou

Aragorn é cavaleiro
Grande rei da raça humana
Legolas, o elfo arqueiro
Sempre com tiros certeiros
Traço do povo imortal
Gimli é seu forte companheiro
Um anão nada ligeiro
Mas com poder descomunal

Uma sombra segue os hobbits
Como eles foi um dia
Será Gollum, será Sméagol
Mas o nome não importa
A criatura horripilante
Completamente delirante
Somente pensa no anel

Refrão ad nauseam


E já que eu não vou escrever qualquer coisa sobre a própria história, ou sobre a minha experiência mística lendo o livro, ou sobre a grande admiração que eu consolidei pelo estilo do Tolkien, fica mais um conhecido link de zombaria:





***




Terminei de ler o livro para rever o filme. Rever, em geral; e assistir pela primeira vez às cenas que fazem parte da versão estendida, a qual baixei, pela bagatela de 7 giga, na versão 1080 de resolução. Constatei que essa resolução, mesmo numa televisão moderna, pouca diferença faz para um filme que, acho, originalmente não foi filmado no padrão atual. A diferença que eu percebi foi tão insignificante, na verdade, que as duas outras partes da trilogia eu baixei no primeiro formato que eu encontrei: o bom e velho DVDRip de confiança.

 
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