sábado, 27 de novembro de 2010

Kill Bill - Quentin Tarantino




Acabei de assistir pela segunda vez a obra que tantas pessoas consideram ser a melhor do Tarantino. Como da primeira vez, assisti ao volume 2 logo na sequência do volume 1, talvez como o próprio diretor teria gostado que a história fosse vista. A outra oportunidade aconteceu no próprio cinema, alguns anos atrás: uma apresentação especial que eu fui descobrir que estava passando bem por acaso, caminhando distraído pela porta do cinema. Dessa vez, também sem maiores planejamentos, assisti na HBO, com um intervalo de apenas alguns poucos minutos entre as sessões.

Foi uma imersão total, portanto, num universo que por sua dualidade pode deixar um homem encabulado. É um universo atraentemente fictício na parte em que Uma Thurman é uma assassina de beleza desconcertante, de talentos incomparáveis e de uma história de vingança que nos comove no primeiro segundo em que descobrimos, afinal, que história é essa. Mas é um universo um pouco triste no seu realismo - no seu realismo de pés horríveis sendo mostrados sem qualquer esforço de se proteger a imagem do contrário perfeita que todos nós teríamos de Uma Thurman. Estou dizendo isso porque mesmo uma pessoa sem qualquer fetiche por pés femininos, porém dotada de um senso estético mínimo, não deixaria de notar como os pés dela se desarmonizam com o resto de suas belas formas. Contemplá-los em isolado chega a ser um pouco desagradável. Os dedos que ali se abrigam parecem tortos demais para a criatura que os encima, do mesmo jeito que as protuberâncias dos ossos articuladores, não como suaves dobras por cima das quais se poderia sentir inclinado a pousar as mãos carinhosamente, lembram os contornos de uma bruxa velha. A cena dela no banco de trás da camionete amarela do Buck, os pés ao fundo, como duas raízes deformadas brotando da terra, desafia qualquer admiração.

Fora isso, evidentemente, são horas de diversão e de estímulos visuais.

É bem verdade que um controle meu, absoluto, monarquicamente absoluto, isto é, sobre como filmes deveriam ser feitos, é bem verdade que um controle assim resultaria em filmes um pouco diferentes. Haveria, fosse esse o caso, reduções significativas na extensão das cenas em que as pessoas ficam só apontando os braços umas para as outras e os movimentos dos seus corpos fazem um barulho cortante no ar. Uma decisão minha, é claro, e uma decisão que nem todos os grandes diretores do cinema mundial precisariam necessariamente seguir. Aliás, em se tratando de filmes sobre pessoas com unfinished business, talvez nem fosse a mais apropriada decisão. Unfinished business a serem resolvidos com inimigos do passado, que é o tema central algumas vezes repetido nesse filme, talvez seja uma circunstância mais bem desenvolvida com uma espécie de parcimônia; principalmente, eu acho, se você passou alguns anos em coma antes de ter a chance de rastrear pelo mundo as pessoas que invadiram o ensaio do seu casamento e metralharam quem quer que estivesse no local. Quer dizer, a ira e o desejo de vingança não reclamam sempre pessoas sobressaltadas que saiam pulando e esmurrando o adversário na primeira chance. É possível, nesse ponto, haver-se com uma razoável dose de comedimento oriental. A ira e o desejo de vingança meio que podem se acumular progressivamente nas veias da pessoa, mais e mais, sempre mais, até o limite humano da força, tudo isso enquanto a pessoa mesma está lá, paradinha, só apontando os seus dedos na direção do inimigo, na posição simuladora de algum animal encontradiço nas florestas asiáticas.

Mas saio dessas pequenas críticas para bajular. Os personagens secundários que mais me agradaram, o tipo de personagem do qual você se esquece completamente depois que viu o filme pela primeira vez e que só entrará nas suas memórias quando você consegue assistir novamente, foram o do xerife e do seu filho nº 1. São os mesmos, eu acho, que aparecem no Death Proof, o que qualquer conhecedor mais profundo da obra do diretor poderia confirmar. Eles são bons, de qualquer maneira, a ponto de merecerem a dupla aparição. Eu fiquei com vontade de me mudar para o Texas só para ver se eu consigo aprender a cuspir com aquela displicência genuína, rústica e técnica.

Notei um besteirinha engraçada na cena em que a Beatrix dizima a gangue dos 88 Loucos. Dificilmente terá sido um erro de direção ou algo que não seja a mais elementar referência aos clássicos de kung fu que inspiraram o Tarantino. O que eu notei, em todo caso, é que um sujeito, supostamente atingido por uma espadada da Beatrix, se bate de dor numa forma bem curiosa. Logo depois que a Beatrix mata um chefão (o chefão que cai numa piscina toda cheia de sangue), de cima do parapeito ela exorta aqueles que ainda estão vivos a saírem do recinto, deixando para trás somente a vergonha da sua derrota e os membros que por casualidade lhe tivessem sido decepados. Segundo todos os conhecidos preceitos de direito natural, sugere ela, esses membros agora lhe pertenciam, na qualidade de guerreira. Voltando ao assunto, um desses soldados sobreviventes, um dos poucos de pé, fica cambaleando às tontas, com as mãos na cabeça. Menos como alguém condoído que sobreviveu a um combate extenuante, o sujeito fica lá, encenando uma pequena brincadeira de cabra cega, sozinho, dando uns chutinhos na cadeira. Dir-se-ia que estava completa e inimputavelmente bêbado, se um pequeno tipo de riso quase imperceptível não estivesse saindo da sua boca e denunciasse que ele não estava fora de controle...

Uso até de reticências para mostrar como achei a coisa estranha e uso até da expressão "eu perguntaria isso numa entrevista" para mostrar como eu fiquei com vontade de perguntar isso numa entrevista. Acho que não aconteceu por acaso ou por má assessoria do diretor em artes marciais. Isso tudo parece ter um sentido próprio. Terá sido esse, eu perguntaria na entrevista, o momento da grande crítica do diretor às nações pusilânimes e acovardadas, que se furtam a entrar nos combates que realmente importam ser combatidos e que, quando confrontadas por seus inimigos, mal percebem de onde estão vindo os ataques? Aos povos que se curvam perante aqueles contra quem deveriam pegar em armas, e que, sob ataque, não reagem senão com uns patéticos golpes no ar, que nada acertam e que em nada debilitam o agressor? Ora, não terminarei eu um post com uma pergunta?

sábado, 20 de novembro de 2010

The usual suspects - Bryan Singer


Eu fiquei pensando na denúncia de que o banditismo tem sido romantizado por uma classe artística corrompida, ou mesmo francamente comprometida com uma certa forma de organização da sociedade que mais ou menos pretende destruir tudo de bom que os pais dos pais dos pais dos pais dos nossos pais quiseram construir neste nosso canto do planeta. Os fatos para os quais se chama atenção, nesse caso, e cujas consequências se vão fazendo sentir no Brasil com uma larga degeneração tanto da sociedade como da arte que lhe devia servir de inspiração, são graves. São muito graves, por natural.

Eu acho ok, no entanto, quando o banditismo que se deseja romantizar não é aquele truculento e chão, e, sim, um banditismo sutil e elevado. Eu acho ok, em matéria de cinema, por exemplo, quando a justificativa para o crime não é a suposta necessidade de dar leite para os filhos ou perturbar a ordem injusta estabelecida pelos ricos, e o sujeito vai e se põe a delinquir por pura malignidade e ganância. Bandido bom, em ficção, não é bandido morto. Bandido bom, em ficção, é bandido bem nascido, ou que pelo menos seja um arrivista com um mínimo de polidez e bons tratos e pelo qual não se consiga, em momento algum, sentir pena.

Tipo Keyser Söze.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Direktøren for det hele - Lars von Trier


Dá até vontade de usar aquelas sequencias verborrágicas de advérbios e adjetivos que costumam ser retiradas das críticas dos jornais direto para as capas de dvd. Com adaptações da linguagem do jornalismo para aquela da blogosfera, é claro. "Meticulosamente irônico, ocasionalmente lobotômico, triunfalmente maneiro". E O Grande Chefe é tudo isso, é tudo isso. O crítico poderia ter escrito assim: "Saí de casa, assisti a um filme meticulosamente irônico, ocasionalmente lobotômico, triunfalmente maneiro, e depois decidi me jogar do oitavo andar porque crianças morriam em Guiné Bissau por falta de água pótavel enquanto eu, usina de pedantismo neste canavial de brutos que é o Brasil, ficava me distraindo com uma comédia dinamarquesa sobre o mundo corporativo. Não mereço a dádiva da vida, assim como você, leitor, é um insulto à criação." O crítico poderia ter escrito aquilo, eu dizia, que nenhuma injustiça estaria sendo cometida se a pessoa responsável por fazer a capa do dvd resolvesse citá-lo apenas na parte do "meticulosamente irônico, ocasionalmente lobotômico, triunfalmente maneiro".

Numa nota mais boba, eu disse mais boba, eu não irei apagar esse filme da memória da SKY. Por enquanto ele vai entrar para a galeria seleta dos indeléveis em que hoje ainda figuram Gotcha, uma Arma do Barulho, Laranja Mecânica, Taxi Driver e O Exterminador do Futuro 2. A lista, eu adianto, tem mais a ver com filmes que eu por acaso vi passarem na televisão e que eu por acaso tive a ideia de gravar, e menos com filmes que eu considere os esplendores do cinema. Não são os filmes dos quais eu mais gosto, mas certamente são filmes que se eu, de uma hora para a outra, sentir um ímpeto enorme de assistir, é bom saber que eu não vou ter que correr a uma locadora ou então ao isohunt. Além do mais, a memória da SKY ainda está com 59% da sua capacidade livre; é um desperdício apagá-los.

Voltando ao filme, uma das coisas mais legais que eu achei na história é como o personagem maluco do ator que é contratado para se fingir presidente da empresa complementa, de um jeito muito natural e bem elaborado, os desvios de personalidade do próprio presidente da empresa que o contratou para aquele serviço. Os nomes, para esclarecer, são Ravn e Kristoffer, quer dizer, Kristoffer e Ravn. Kristoffer é o ator que enxerga na sua atuação, escassa e desbotada o quanto ela pudesse ter sido no passado, um sentido grandioso e profundo a que o seu talento infelizmente não consegue corresponder. Culpa, dentre outros, das suas pausas incompreensíveis no discurso, da sua total falta de expressão facial e da circunstância incômoda dele usar todo dia a mesma roupa. O simples trabalho de comparecer a uma reunião, dizer que ele estava feliz de estar ali e assinar um contrato, Kristoffer consegue transformar numa escalada culminando no desastre pessoal e na calamidade empresarial, não sem antes enfrentar a avalanche de um casamento prometido a uma mulher cujo nome ele ignora.

Mas as coisas não acontecem como se Kristoffer fosse o único doente mental da história. Ravn não fica atrás como um confirmado estróina. O que ele fez, vejam, foi contratar um ator para se passar pelo presidente da empresa que ele próprio fundou e da qual ele próprio era o presidente. Ele fez isso, vejam, para evitar os tormentos insuportáveis no mundo hodierno de um empresário se responsabilizar, perante seus empregados, pelas decisões que ele toma na condução negocial da internacionalização do seu eficiente produto de TI, o Brooker 5. O personagem é o de um louco, e é divertido vê-lo se encontrando com Kristoffer, em territórios neutros, fora da empresa, para confabular sobre como o ato de fingimento poderia ser desempenhado com sucesso e para compartilhar solidariedade quando inevitavelmente as coisas colapsam.

sábado, 13 de novembro de 2010

Take the money and run - Woody Allen


Algumas cenas deste filme me fizeram pensar que a qualquer momento o Woody Allen iria se colocar em frente a um armário, experimentar um monte de roupas engraçadinhas, fazendo pose e tudo, enquanto ao fundo uma música divertida era executada. O tipo de coisa, eu quero dizer, que se pode ver nos filmes antigos do Rob Schneider. Só faltou mesmo ficar experimentando os diferentes figurinos, porque fazer as poses cômicas, ao som de uma trilha sonora abertamente feliz, isso o Woody Allen fez. Nada disso, é claro, me irritou de uma maneira séria, embora tenha me perturbado um pouco, no que a dúvida sobre quando é que esta funesta tradição começou ficava indo e vindo na minha cabeça. Quando é, afinal, que mostrar a pessoa experimentando diferentes peças de roupas foi pela primeira vez considerado um recurso humorístico aceitável; e por que, desde então, repeti-lo não é considerado um atroz desrespeito com as pessoas que querem genuinamente rir com uma história? São questões para as quais eu ainda procuro uma resposta e que se eu me deparasse com uma monografia inteira dedicada ao tema, provavelmente eu pararia para conferir pelo menos o resumo.

Como hoje em dia Woody Allen só faz filmes com a fotografia resplandescente, fresca, e com roteiros lineares que no máximo permitem umas poucas observações de um narrador logo no início, na época desse filme ele também só fazia filmes com a fotografia opaca, envelhecida, e com enredos integralmente conduzidos por um narrador que vai do começo ao fim expondo os personagens com pretensões de descrição científica. TTMR não é diferente. Até entrevistas dos personagens e com pessoas que conheciam os personagens você vai encontrar. Talvez uma monografia que identificasse o nascimento do gênero fosse também uma leitura interessante (colho o seguinte resumo e não para a minha surpresa eu encontro a referência deste filme).


Kika - Pedro Almodóvar


Deixei passar um tempo muito grande desde o dia em que eu assisti a este filme para que este post pudesse se tornar qualquer coisa que não um mero registro. Faz aí uma semana ou um pouco mais que tudo aconteceu, e ao contrário do que se poderia esperar de uma obra de arte atemporal como é qualquer coisa que venha das mãos de Pedro Almodóvar, vejo-me na delicada circunstância de dizer que eu não me lembro muito da história. Escrevo isso sorumbático, ciente de que Caetano Veloso deve me achar um filisteu incurável.

O que está na claro na minha lembrança é que eu ri bastante e que nesse filme aconteceu o excepcional fato de eu notar, logo no início, um detalhe crucial mais tarde levado a uma posição de destaque no enredo. Mas eu não faço ideia de qual detalhe foi esse. Apenas me informaram, eu acho, que eu estava certo em achar estranhas umas cordas que apareciam em algum lugar. Só disso é que eu me lembro.

Olhando com atenção para esta foto aí em cima, no entanto, me recordo um pouco das duas primeiras personagens, à esquerda. A primeira delas é a apresentadora de um programa de televisão desmiolado, uma espécie de Aqui e Agora com elementos de Zorra Total. Ela relata tenebrosidades policiais que chocam a população espanhola, mas acalenta o público com a visão constante dos seus seios, por entre buracos nas suas roupas de couro. Quando ela não está apresentando o programa, ela anda com uma câmera pregada num capacete. A outra é a empregada da personagem principal. Ela é uma pouco recatada lésbica que não refreia seus desejos nem mesmo para a sua empregadora, e que aliás serviçalmente obsequia a patroa com investidas despudoradas enquanto casualmente a ajuda a cortar legumes.

domingo, 7 de novembro de 2010

Stealing Beauty - Bernardo Bertolucci

Stealing Beauty Poster

Assistir a este filme foi quase um dos momentos mais elegantes que eu, na minha (aliás) improfícua carreira de mestre das questões de informática, poderia produzir em matéria de adaptação e aproveitamento de tecnologias. Teria sido, eu posso dizer, ao mesmo tempo simples e engenhosa a solução que eu tentei improvisar no cenário de escassez material em que eu me encontrava. Quase que deu certo. Passo a passo eu fui superando os obstáculos que se me apresentavam, passo a passo eu fui me aproximando de uma vitória apoteótica. Cheguei a acreditar e cheguei a fazer acreditar. Mas o final, isto é, o ocaso final terminativo que encerrou a minha longa empreitada com uma nota de fracasso foi causado pelo imponderável. Foi causado por algo que talvez eu pudesse antever, mas que aparentemente eu nada poderia fazer para evitar.

O desafio às minhas poucas luzes era executar um dvd, só que sem um aparelho de dvd. O que eu tinha em mãos era o disco e uma televisão com entrada USB. O que eu não tinha, desafortunadamente, era um cabo USB de duas pontas que eu pudesse usar para ligar este meu mac à televisão. O único jeito de assistir ao filme na televisão em vez de no computador, que foi o que eu acabei fazendo, era recorrer aos outros perif'éricos. Eu tinha um iphone e um ipod e nada mais. O primeiro é o que eu uso na itunes que eu tenho neste computador, o outro, numa itunes totalmente separada que eu mantenho num outro computador, distante quilômetros.

Meu humilde plano tinha três etapas e foi o seguinte. Inserindo o disco no mac, transformar e depois adicionar o arquivo de vídeo à itunes. Inserindo o iphone no mac, sincronizar o conteúdo. Inserindo, por fim, o iphone na televisão, rir, me chocar e talvez refletir um segundo sobre os estrambólicos personagens do filme. Infelizmente a minha escolha tinha que ser pelo iphone e foi isso que causou o meu desconsolo. As duas primeiras etapas do plano que eu imaginei, como eu disse, foram realizadas com sucesso. Na última, porém, veio o triste conhecimento de que, bastante imponderavelmente, o iphone é um dispositivo USB que a televisão da LG não aceita. E então nada mais foi tentado. Me dei por vencido e fui ver o filme pelo próprio computador.

Eu gostaria, aqui, de me defender daqueles que com pressa poderiam me acusar de mau escolhedor, no que diz respeito à opção do iphone no lugar do ipod. O ipod, eu sabia e depois confirmei, é um dispositivo usb que funciona maravilhosamente bem nas televisões da LG. O meu problema em transferir o filme para o ipod nunca esteve no ipod, mas na itunes, e eu lhes digo o porquê.

Há alguns meses, eu atualizei a versão da itunes em que eu deixo as músicas que eu escuto no meu ipod. Acho que para a versão 9.0, se eu me lembro bem. Essa simples atualização, em todo caso, foi o que bastou para gerar um erro irreparável no ipod e me transtornar a vida por alguns dias. Depois que eu baixei lá a nova versão, o aparelho entrou no que muito apropriadamente poderia ser chamado de espiral do silêncio, uma pane do aplicativo provocando a falência de todas as funções do ipod e basicamente fazendo de mim um entusiasmado, porém sofrivelmente fracassado, exegeta das escrituras disponibilizadas nos foruns da apple do mundo inteiro. Nenhuma das soluções propugnadas nesses foruns resolveu o meu problema. Nenhuma. Versões as mais elaboradas de ligar e desligar, com entradas sendo colocadas em saídas diferentes, saídas recebendo fios advindos de entradas alheias, up-grades e down-grades de praticamente tudo que veio depois do DOS. Nada disso adiantou. O erro desconhecido continuava a inutilizar completamente o aparelho. Eu cheguei a postar sobre isso aqui? Já não sei. O que sei é que a garantia da apple é que me salvou -- e se eu não fosse salvo nesta última instância da esperança humana, nada mais me teria resgatado.

Defendo-me que evitar o risco com a transferência do vídeo desse filme para o meu ipod, numa itunes que está numa versão diferente daquela que eu uso neste computador aqui, isso é o que eu cautelosamente queria fazer.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Gran Torino - Clint Eastwood




Quando este filme estava passando no cinema, isso há uns dois anos, imagino, uma amiga me falou que ela tinha visto e que tinha gostado. Recomendou que eu visse, não muito efusivamente. Disse apenas que era legal, eu acho. Uns outros dois ou três filmes que tinham parecido bons a ela estavam numa pequena lista despretensiosa e, junto deles, Gran Torino acabou não ganhando o destaque eu eu acho que ele deveria ter. Porque pela lacônica descrição que ela tinha me apresentado - "um filme" - eu não poderia supor uma circunstância, a de que na verdade se tratava não apenas de um filme, mas de várias histórias consagradas nos anais do cinema. Um cuidadoso ato de sincretismo cinematográfico, isto é que é este filme.

Vamos começar pelo mais óbvio de todos os filmes que formam o conglomerado Gran Torino: Karate Kid. Uma rápida pesquisa no Google com os dois nomes mostra bem como é absolutamente geral e multipartidária a impressão de que os dois filmes são os mesmos. É só olhar. Você tem as gangues, o fetiche pueril pelo carro, toda aquela história de tornar um menino um homem por meio do contato, ainda que apenas tangencial em Gran Torino, com a arte da luta física. Tudo que fez Karate Kid ser o sucesso que ele ainda é, tudo está em Gran Torino. Você tem até cenas explícitas de um garoto pintando uma parede por força de um contrato moral com um homem velho demais para serviços manuais, o que apenas mostra como é profunda a admiração que Clint Eastwood nutre por aquele grande clássico e reformador da juventude.

Numa perspectiva mais branda, Clint Eastwood interpreta o Mr. Wilson.

Em se tratando de aparições de Clint Eastwood, é claro, qualquer filme é no máximo um prolongamento das histórias do Homem Sem Nome. Gran Torino não é nenhuma exceção a essa regra. Simbólico ou simplesmente pantomímico, o ato de sacar um arma ou fingir que está sacando uma arma é um elemento constante ao longo de toda a história. E sempre ele é feito com aquela expressão facial que caracteriza o grande imitador de Clint Eastwood que o próprio Clint Eastwood é. Dá-se-lhe um cigarro; fá-lo cuspir no chão; e subitamente, sem maiores esforços, se tem Clint Eastwood mais uma vez protagonizando uma grande cena do melhor estilo faroeste. Realmente, não importa que os bandidos com os quais ele esteja em contenda não sejam aqueles usuais foragidos mexicanos, mas, notem, homeboys com camisetas da Nike.

[Certa estupidez na hora de salvar o post me fez perder a continuação. Fez o mundo perder a continuação, para ser mais exato. Era genial. Eu tinha apontado elaboradamente como Gran Torino era, no fundo, Dança com Lobos. Como era, também, Um Príncipe em Nova Iorque e Juno.]

domingo, 31 de outubro de 2010

The Adventures of Sally - P.G. Wodehouse





Outras boas cinco horas de diversão, este livro. Baixei no Librivox para ouvir na estrada e isso fez toda a diferença no que do contrário seriam horas ouvindo um material bem menos literário, tipo Dirtbombs, Love Battery e (o menos literário de todos) Oblivians. A leitura, dessa vez, foi apropriadamente feita por uma mulher igualmente americana, como a Sally, e igualmente dotada de uma voz amistosa e íntima -- o que, na minha cabeça, tornou mais fácil de acontecer a confusão que eu sempre faço entre os personagens e as pessoas que representam esses personagens. A situação, de toda maneira, me pareceu bastante conveniente, mesmo por que a narrativa escapou ao esquema tradicional em que a primeira pessoa é um jovem inglês rico e fútil e desastrado e cativante. Quer dizer, nos livros do Bertie Wooster, apesar da narrativa em primeira pessoa, o enredo sempre acabava se desdobrando nas pequenas misérias de pessoas que estavam ao redor dele e que se beneficiavam da providencial sabedoria do Jeeves. Neste livro sobre a Sally até que acontece um pouco disso, mas com uma diferença: ela se envolve na vida de um monte de pessoas e até se encarrega de ajudá-las com seus problemas, mas a história não é contada desde o seu ponto de vista. Há passagens inteiras de acontecimentos, pelo que eu me lembro, em que ela sequer está presente.

A respeito da história, informo que Sally se tornou essa criatura tão propensa a aventuras, a ponto de merecer um tomo inteiro dedicado só a isso, ao lhe ser aplicada uma severa alteração na quantidade de dinheiro que ela tinha no banco para descontar na forma de cheques. Isso, um súbito aumento nas suas reservas financeiras, foi feito logo no primeiro parágrafo. Um jantar com os amigos comemora ela ter recebido das mãos de um tio o legado de 25 mil dólares que o pai lhe havia deixado em testamento. Ela então parte da pensão onde morava e viaja para a França, voltando de lá na sua nova condição de mais que remediada. Na França ela conhece dois sujeitos que irão protagonizar algumas das suas aventuras, no retorno a Nova Iorque, Ginger e Bruce. Também participam disso o irmão dela, Fillmore, e o noivo, Gerald.

***

Para preencher espaço, segue a transcrição da minha cena favorita. Sally tenta arrancar de Ginger o motivo pelo qual Fillmore o havia despedido do emprego que ela tinha arranjado para ele. A moça que fez a gravação esteve muito bem nessa hora. Muito obrigado, Karen.

"Why did Fillmore let you go?"
"Let me go? Oh, you mean... well, there was a sort of mix-up. A kind of misunderstanding."
"What happened?"
"Oh, it was nothing. Just a..."
"What happened?"
Ginger's disfigured countenance betrayed embarrassment. He looked awkwardly about the room.
"It's not worth talking about."
"It is worth talking about. I've a right to know. It was I who sent you to Fillmore..."
"Now that," said Ginger, "was jolly decent of you."
"Don't interrupt! I sent you to Fillmore, and he had no business to let you go without saying a word to me. What happened?"
Ginger twiddled his fingers unhappily.
"Well, it was rather unfortunate. You see, his wife—I don't know if you know her?..."
"Of course I know her."
"Why, yes, you would, wouldn't you? Your brother's wife, I mean," said Ginger acutely. "Though, as a matter of fact, you often find sisters-in-law who won't have anything to do with one another. I know a fellow..."
"Ginger," said Sally, "it's no good your thinking you can get out of telling me by rambling off on other subjects. I'm grim and resolute and relentless, and I mean to get this story out of you if I have to use a corkscrew. Fillmore's wife, you were saying..."
Ginger came back reluctantly to the main theme.
"Well, she came into the office one morning, and we started fooling about..."
"Fooling about?"
"Well, kind of chivvying each other."
"Chivvying?"
"At least I was."
"You were what?"
"Sort of chasing her a bit, you know."
Sally regarded this apostle of frivolity with amazement.
"What do you mean?"
Ginger's embarrassment increased.
"The thing was, you see, she happened to trickle in rather quietly when I happened to be looking at something, and I didn't know she was there till she suddenly grabbed it..."
"Grabbed what?"
"The thing. The thing I happened to be looking at. She bagged it... collared it... took it away from me, you know, and wouldn't give it back and generally started to rot about a bit, so I rather began to chivvy her to some extent, and I'd just caught her when your brother happened to roll in. I suppose," said Ginger, putting two and two together, "he had really come with her to the office and had happened to hang back for a minute or two, to talk to somebody or something... well, of course, he was considerably fed to see me apparently doing jiu-jitsu with his wife. Enough to rattle any man, if you come to think of it," said Ginger, ever fair-minded. "Well, he didn't say anything at the time, but a bit later in the day he called me in and administered the push."
Sally shook her head.
"It sounds the craziest story to me. What was it that Mrs. Fillmore took from you?"
"Oh, just something."
Sally rapped the table imperiously.
"Ginger!"
"Well, as a matter of fact," said her goaded visitor, "It was a photograph."
"Who of? Or, if you're particular, of whom?"
"Well... you, to be absolutely accurate."
"Me?" Sally stared. "But I've never given you a photograph of myself."
Ginger's face was a study in scarlet and purple.

sábado, 30 de outubro de 2010

Cemetery Junction - Ricky Gervais & Stephen Merchant



Senhoras e senhores, é com profunda tristeza que eu lhes anuncio a minha profunda tristeza. Dizem que falar mal de uma coisa é divertido, sobretudo se a apropriada dosagem de leviandade for observada na crítica e se a proporção da virulência dos ataques for inversa à capacidade do agressor em fazer alguma coisa melhor. Esse post, pensando assim, deveria ser como uma fonte inesgotável de alegria para mim. Mas a verdade é que não é. Ele chega a ser doloroso, aliás. Embora a minha inépcia em escrever, dirigir e produzir um filme com a mesma qualidade de Cemetery Junction seja vastamente reconhecida -- e isso pudesse me trazer algum laivo de divertimento -- , não me deixa de maneira alguma contente o fato de que, se eu tiver mesmo que opinar sobre este filme, o meu veredicto tenha de ser tão desfavorável. É claro que neste inútil blog eu não tenho que opinar sobre qualquer coisa. E é claro também que eu não precisava dar esse pequeno chilique para dizer que eu não gostei do raio do filme. Mas se eu não escrevesse sobre o assunto, na cabeça de alguém poderia ficar o pensamento de que talvez eu tivesse, sim, visto o filme e talvez eu tivesse, sim, gostado. Afinal, não foram poucos os elogios que eu já coloquei aqui ao Gervais e ao Merchant. Por pura esquisitice, no entanto, eu gostaria de afirmar bastante claramente que outras coisas desses dois podem ser soberbas, mas que, na minha opinião, Cemetery Junction é tão ruim quanto as vidas patéticas que são retratadas na história. Ricky Gervais e Stephen Merchant, sabemos, já produziram alguns dos melhores momentos de comédia que eu já vi. Nesse filme eles erraram. Artistas tão genuinamente engraçados como eles não poderiam, como fizeram, prescindir tão completamente de um elemento cômico, numa obra que dura uma hora e meia. Por mais que eles não tenham desejado fazer uma comédia, a frustração que esse filme sem graça produz nos fãs é tão grande que não poderia jamais ser ignorada. Querem se livrar do estigma de palhaços e explorar áreas mais dramáticas da psicologia humana, enquanto permitem que todas as nostalgias que vocês têm de uma adolescência conflituosa sejam exorcizadas artisticamente? Assistam Stand by me, my jolly good friends. Vocês e eles dois.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Lenny Hearts Eunice - Gary Shteyngart

Eu estava me desincumbindo da longamente postergada missão de colocar na lista de favoritos do meu novo computador alguns sites que eu costumo ler com certa regularidade quando eu comecei a passar os olhos por este conto. Não parei de ler até chegar ao final, me impressionando bastante com aquilo que eu ia encontrando pelo caminho. Em filmes eu sempre reparo quando uma pessoa diz que começou a ler alguma coisa no início da noite e que, pelo entusiasmo desenfreado que o material engendrou no seu cérebro, só conseguiu largar o livro na manhã seguinte. Por mais babaca que essa afirmação me pareça, vou me servir da mesma fórmula para elogiar o que eu li. Até por que a história não é muito grande e ler um conto até o fim pode muito bem ser prova da falta do quê fazer de quem o lê, antes que um testemunho de admiração descabida do leitor pela pessoa que o escreveu. O pouco que eu fiquei conhecendo de Gary Shteyngart, é claro, me faz me pensar que ele merece mesmo estar na lista de talentos selecionados pela revista.

Não deixem de ver.


sábado, 16 de outubro de 2010

Harry, un ami qui vous veut du bien - Dominik Moll



Um filme que começa e termina com grandes cenas já é uma promessa de redenção. Uma ova para quem disser que punch lines são vulgares, e que o equivalente delas no cinema (não sei qual é o termo técnico) não prestam. Notem que existe humor bom sem punch line e existe cinema bom sem grandes cenas. Mas, da mesma forma que o humor se torna especialmente ditoso quando repleto das frases de efeito, um filme se consagra para além de qualquer discussão quando o seu início e o seu fim captam, transmitem e enceram visivelmente a própria ideia que foi desenvolvida ao longo da história.

No caso de Michel, é mais ou menos irrelevante tudo que acontece com ele desde a hora em que o vemos pela primeira vez, o desespero agonizante estampado na sua expressão, até o último relance da sua imagem, já feita de um puro e tranquilo contentamento. Irrelevante, na medida em que um pouco chato. Quer dizer, a sequência de pequenas pilhérias (só assim eu consigo descrever o que o Harry faz) que o seu antigo amigo de escola começa a levar a efeito para conquistar a amizade do velho camarada de liceu ajuda a solidificar o desespero que Michel sentia no início e enaltece, portanto, a bonomia perfeita que ele experimenta no final. Mas ela não é determinante para esse resultado, que, se tivesse sido obtido por quaisquer outros meios - e certamente existiam outros meios de Michel se transformar do jeito que se transformou -, ainda assim tornaria esse filme um grande filme.

Que me seja permitido contar um pouco do filme para explicar melhor o que eu estou tentando dizer. A história é a do Michel, que viajava com a sua mulher e com as suas três filhas numa espécie de Belina sem ar-condicionado, sofrendo em cada célula do seu organismo o incômodo do calor. Numa parada da estrada, Michel se enc0ntra com Harry, um colega de escola
que, digamos assim, não o tinha esquecido. Esse é o evento desencadeador do conflito, pois a partir desse momento Harry passa a se imiscuir na vida de Michel da forma a mais desastrada e fatal possível. Irresponsavelmente, enlouquecidamente, Harry passa a corrigir os obstáculos que ele enxerga como sendo os grandes empecilhos na vida de Michel, os grandes estorvos que ele carrega e que impedem que ele se torne o grande talento literário que supostamente ele seria na época em que os dois estudavam juntos.

Michel nada, ou muito pouco, poderia fazer para evitar que essas drásticas intervenções da parte de Harry fossem feitas na sua vida, pois sequer ciência ele tinha da coisa. A parte em que falei que o que aconteceu na vida de Michel foi um pouco chato vocês podem atribuir a ele ser francês e tal. A parte em que eu falei que o que aconteceu foi irrelevante é que importa. Partindo da cena inicial, poderíamos chegar, como de fato praticamente chegamos, à cena final, sem que Michel tivesse a mais vaga ideia de tudo que Harry fez para mudar a vida do amigo. Se isso é verdade, bastaria que um único pequeno detalhe mudasse, por qualquer motivo, para que Michel viesse a se sentir tão bem, como ele se sentiu, em oposição ao sofrimento atroz do início. Bastaria um novo carro, isto é.

Só que ao lado desse carro, Harry fez muito mais. Fez coisas abomináveis, coisas desnecessárias. Fez tudo isso em nome de um suposto valor filosófico-moral que, como tudo aquilo que motiva um personagem francês a fazer qualquer coisa, costuma ser supinamente chato.

Nessa parte inteira, o filme é intolerável. No pouco que resta, muito divertido.

My Man, Jeeves - P.G Wodehouse

Curiosamente, foi numa época em que eu praticamente não saía de casa que eu comecei a baixar arquivos com gente ou computadores lendo livros. Baixava quase sempre no site do projeto Gutemberg e, ao contrário da maioria das pessoas, eu acho, me divertia bastante ouvindo as máquinas proclamando monotonicamente o texto. Elas não dominavam a prosódia em todos os seus limites, variáveis e detalhes, eu notava, mas tampouco eram acometidas por tosses incômodas ou súbitos embargos na voz. Eu também gostava, enquanto escutava a gravação, de ler os textos naquele formato bloco de notas em que você continuava lendo sem interrupções, porque você não tinha páginas definidas e o margeamento era bem menos que regular.

Falo sobre audio livros porque esse tipo de atividade voltou a fazer parte da minha rotina, dessa vez justamente porque eu passei a gastar uma boa parte do meu tempo fora de casa, mais precisamente, dirigindo. My Man, Jeeves foi o primeiro que eu baixei de um catálogo consideravelmente extenso, para ser gratuito, e que eu recomendo a qualquer um como fonte de opções em matéria de coisas a serem ouvidas em viagens semanais. Ali serão encontradas gravações de diferentes qualidades, todas humanas, eu acho, e as opções de download são boas. Você poderá escolher tocar o arquivo na própria página ou poderá, ainda, baixá-lo compactado.

A cronologia das histórias do livro é que me deixou um pouco perdido, se bem que, mesmo agora, eu entenda que ela faz todo sentido com o resto do que eu sei sobre a saga. O primeiro livro da série que eu li, Right-Ho Jeeves, eu li mais ou menos na mesma época em que eu baixei os episódios feitos para a televisão. A minha lembrança é a do Hugh Laurie, como Bertie, chegando em casa completamente embriagado, depois de receber uma sentença penal condenatória, por ter roubado o capacete de um policial, e a do Stephen Fry, como Jeeves, entrando pela porta, colocando em ordem a bagunça espalhada e preparando uma poção estimuladora da sobriedade. Tudo isso se passando, é claro, em Londres.

My Man, Jeeves, narra episódios que se passaram durante a estadia do Bertie nos Estados Unidos, o que eu me lembro como tendo sido mostrado também na série. O aparente problema, na minha cabeça, é que neste livro são feitas algumas menções a acontecimentos que teriam acontecido antes que ele fosse para Nova Iorque, como, por exemplo, uma confusão havida na tentativa de livrar o Gussie (o primo de aspecto algo piscino) de um casamento indesejável. Eu me lembro disso acontecendo na série, mas sinceramente não sei se teria sido antes ou depois da temporada americana. Aqui entre nós, aliás, foram tantas as vezes que o Bertie resolveu se encarregar de salvar o Gussie dos e nos seus casamentos que essa minha dúvida cronológica fica sendo até boba, quando não é impertinente.

O livro, de toda maneira, pode ser lido e devidamente aproveitado sem esses conhecimentos prévios e sem se tornar angustiante pela ausência de informações sobre o futuro. Os capítulos são quase verdadeiros contos independentes. Bertie Wooster aparece inicialmente narrando uma estúpida briga com o seu mordomo envolvendo alguma peça da sua indumentária, para logo depois tentar se reconciliar com Jeeves, no que este dá conselhos a algum amigo do patrão acerca das mais variadas miudezas com as quais uma pessoa pode se complicar. Geralmente esse amigo tenderá à nesciedade, podendo essa condição ser agravada pela dependência financeira de algum parente. Jeeves aparece como o cérebro dos esquemas necessários à sobrevivência digna em meio à geral periclitância.

É bom dizer que nem todas essas histórias, apesar do título, se passam com esses dois. Três ou quatro dos capítulos, não sei bem, têm outro narrador, um tal Reggie Pepper. São histórias que eu achei bem menos cativantes, não importa o quão similares possam ser os estilos, que de fato se constroem em cima de narrativas em primeira pessoa -- em ambos os casos a frivolidade absoluta sendo a característica principal dela.

A gravação que eu peguei é feita por um americano e tem 5,2 horas de duração, de acordo com a iTunes.


Novo post

Pelo menos uma breve nota de explicação eu me sinto inclinado a apresentar aos meus leitores, uma exposição de motivos. O pedido de desculpas é pelo tempo recorde em que eu fiquei sem postar. Já são cinco meses, uma fração considerável, portanto, da própria vida desse blog. E se uso a palavra "leitores" para designar aqueles a quem eu estou pedindo desculpas, não é de forma alguma por não considerá-los mais dignos da expressão "pessoas que só rapidamente chegam a este blog por causa do Google e que aqui não se demoram". Assim eu os considero porque é isso, em verdade, que eles são. Chego até a escrever sobre elas, essas pessoas, e não para vocês, que poderiam estar me lendo. Faço isso porque usar a palavra "leitores"aqui é uma impropriedade - neste post, mais do que em qualquer outro. Só a uso por capricho, porque já pude constatar que se isto aqui já foi frequentado no passado, hoje esses espécimens migraram para outros cantos, desinteressados.

O pior é que eu não deixei de existir. Nas penumbras das cidades, eu continuei tontamente o plano divino da minha existência. Tive as minhas emoções sabáticas, digamos assim, enquanto permanecia a mesma criatura da rotina dominical. Fui a alguns lugares, vi algumas paisagens e venci alguns lhurgoyfs que me atacaram. Mas, basicamente, continuei onde eu já estava. Sobre o que eu vi, não posso dizer que tenha adiantado muito a minha evolução como ser humano, pois, embora não tenha sido pouco, a justa asserção é a de que eu continuei um perfeito míope. E sobre os lhgurgoyfs, bom, todo mundo sabe que um lhurgoyf não irá para o cemitério sem antes lhe arrancar alguns preciosos pontos.

De modo que muita coisa fiz e nada realizei.

Nesses meses, é claro, este blog terá perdido alguns posts sobre as inutilidades que aqui se acumulam. Alguns livros e filmes, algumas músicas e verdades universais, que ordinariamente teriam sido compendiados aqui, ficarão de fora da lista. O sujeito da enciclopédia britânica, no entanto, me ligou e disse que esse pequeno intervalo na minha produção blogueira aconteceu na medida certa: nem irá aguçar a curiosidade dos estudiosos quanto ao quê terá se passado na minha vida pessoal durante a minha fase silenciosa, nem irá prejudicar a qualidade geral, a extensão e amplitude do espectro de assuntos tratados no verbete. Uma conjuntura, afinal, de win-win ou, como diriam os antigos, de bem sucedido hedge.

Posso fazer muitas promessas, com tranquilidade. Ou bem elas serão totalmente vazias, ou bem elas serão devidamente esvaziadas. Em qualquer dos casos, eu juro que eu irei me penitenciar mentalmente se eu deixar passar mais do que duas semanas sem colocar nada novo aqui.

domingo, 16 de maio de 2010

American Psycho - Mary Harron

***

"I got a business card 'cause I wanna win some lunches! That's what my business card says: Mitch Hedberg, Potential Lunch Winner. Gimme a call, maybe we'll have some lunch. If I'm lucky!" - Mitch Hedberg.

Essa piada foi a primeira coisa que começou a vir na minha cabeça quando eu percebi que o aspecto mais interessante da psicopatia de Patrick Bateman era a apreciação deveras doentia pelo cartão de negócios dos outros. O resto do filme foi só uma desculpa para pensar em como poderia ser a cena da prisão do Patrick, num diálogo legendado.

***

[entrando numa sala da firma Pierce & Pierce, onde Patrick Bateman está sozinho, escutando Huey Lewis num walkmen paleolítico, com um semblante entre puramente aristocrático e aparentemente constipado]

- Senhor Patrick Bateman? Oficial O.
- Sim, oficial. Sou eu.
- Senhor Patrick Bateman, você está preso pela morte de Mitch Hedberg. Você tem direito a um advogado. Você tem direito a permanecer calado. Tudo que disser poderá e será usado contra você no tribunal. Você vai resistir e me obrigar a fazer uma cena bem no meio do escritório, senhor Bateman, bem no meio dos seus colegas de trabalho, ou eu posso contar com a sua cooperação, senhor Bateman?
- Oficial, não há necessidade dessa loucura prosseguir. Fique com essas algemas. Ninguém na firma precisa equivocadamente pensar que eu estou sendo preso por alguma coisa.
- Foi o que eu pensei, senhor Bateman, foi o que eu pensei.
- Agora, oficial, o senhor poderia me fazer a gentileza de dizer do que o senhor está falando, para que eu possa esclarecer qualquer desentendido? Queira se sentar, oficial.
- Estou falando do assassinato de Mitch Hedberg, senhor Bateman. Estou falando do sangue pelo qual o senhor pagará.
- Espere um segundo. Você está dizendo que eu matei Mitch quem?
- Mitchell Lee Hedberg, trinta e sete anos. Caucasiano. Humorista. Lembre-se que o senhor pode ficar calado, senhor Bateman. Se quiser, o senhor pode me acompanhar discretamente ao Departamento, e falar apenas na presença do seu advogado. Eu devo lhe informar, senhor Bateman, que eu prestarei testemunho de tudo que está acontecendo aqui, e qualquer impertinência que o senhor falar eu sei obrigado a colocar no relatório.
- Oficial, eu insisto em conversar. Posso pedir alguma coisa para você enquanto isso? Qualquer coisa. Não será incômodo algum.
- Obrigado, senhor Bateman, estou bem.
- Oficial, deve ter havido algum engano. Com base em quê eu estou sendo acusado dessa coisa ridícula?
- Poupe suas palavras, senhor Bateman. Aos jurados é que você vai ter que mostrar quem você é.
- Oficial, eu realmente não entendo o porquê dessa nossa conversa ter que sair dos limites da mais absoluta cortesia. Vamos, oficial, fale comigo.
- Isso não é uma das suas operações de mercado, senhor Bateman. O senhor não poderá me convencer a comprar ações a preços inacreditáveis, com retorno garantido.
- Por favor, oficial, eu só quero esclarecer tudo. O senhor compreenderá a minha situação...
- Quem não compreenderá jamais a sua situação, senhor Bateman, é Mitch Hedberg!
- Mitch Hedberg, esse nome não me é estranho. Eu deveria reconhecê-lo por algum motivo?
- Este nome não lhe é estranho? Você diz que esse nome não lhe é estranho? Senhor Bateman, este nome está escrito por toda a sua cara hidratada junto à palavra assassinato.
- Será que você poderia me dizer quem é esse sujeito, oficial.
- Eu acredito que o senhor vá se lembrar de Mitch Hedberg não como um dos seus amigos de Wall Street, não é mesmo, senhor Bateman? Não como um dos frequentadores dos seus clubes e nem como um figurão dos negócios. Mas, diga-me, senhor Bateman, você e Mitch Hedberg não tinham um amigo em comum no lado oeste? Um amigo que lhes fornecia as suas preciosas gramas das suas preciosas substâncias? Não estou certo, senhor Bateman? O senhor não comprava as drogas que animavam as suas noites de esbórnia de Dick Jumper, do lado oeste?
- Eu não sei do que o senhor está falando, oficial. Eu realmente não sei. Eu sou um respeitado homem de negócios.
- Oh, senhor Bateman, os seus negócios, os seus negócios. Claro, eu andei levantando a sua ficha. Graduado em Harvard, no topo da sua classe. Nunca precisou se preocupar com um emprego, não é mesmo, senhor Bateman. Com um histórico desses e com apenas uma pequena ajuda do Senhor Bateman Sênior, como diabos o pequeno Patrick se tornaria qualquer outra coisa que não um jovem bem-sucedido na sua carreira...
- Se você deseja me fazer sentir culpado por alguma coisa, oficial, é melhor não escolher o fato de que eu nasci numa família rica. O que separa homens como eu de homens como Mitch Hedberg é muito mais do que dinheiro, oficial: é uma coisa chamada instinto natural.
- Você chama de instinto natural esquartejar um indivíduo sem piedade? Eu chamo isso de estupidez, senhor Bateman, se você fizer isso e então deixar o cadáver num nem tão escondido assim depósito em Hell's Kitchen.
- Você não tem nenhuma prova.
- Ah, mas eu tenho, senhor Bateman, eu tenho. Aquele corpo decompondo em Hell's Kitchen, você o botou lá na noite de 29 de setembro, não foi, senhor Bateman? Para o seu azar, o cafetão da senhorita Laura Jules, ou, como o senhor prefere chamá-la, Christie, é um sujeito muito organizado com agenda de suas garotas.
- Você não está dizendo a verdade, oficial.
- E tudo por causa de um cartão.
- Aquele maldito mereceu!
- O que foi, senhor Bateman, nunca tinha visto uma desculpa tão vulgar para que um homem tivesse um cartão de negócios ou foi a a vulgaridade do próprio cartão, com aquela fonte ordinária e naquele papel simplório, que lhe fez querer matar Hitch Hedberg?
- Bem, oficial, eu devo confessar que a alta incidência de cadáveres sendo deixados em Hell's Ktichen, embora um fato inteiramente natural naquele lugar impossivelmente sórdido, é também um resultado, modesto é verdade, das minhas singelas contribuições na requintada arte do homicídio. Você sabe, eu não consigo disciplinar este ardente ímpeto em apagar as provas dos meus crimes, de modo a me beneficiar de uma doce impunidade. Oficial, eu não consigo imaginar que ser colocado na prisão irá aumentar as minhas chances de conseguir uma reserva numa mesa decente do Dorsia's.
- Senhor Bateman, o senhor ainda não tem condições de saber disso, já que ainda estamos no início dos anos 90, mas eu me tornarei uma pessoa capaz de fazer coisas que o senhor não conseguir uma reserva numa mesa decente do Dorsia's vai ser o menor, o menos angustiante dos seus problemas. Espere por um filme chamado o Paciente Inglês, senhor Bateman, e então o senhor verá do que eu sou capaz de fazer.
- Mas você não é e não poderia ser Willem Dafoe, oficial. Ele era um simples detetive particular. O papel dele é completamente incompatível com esse desfecho, artisticamente -- e eu enfatizo a palavra artisticamente.
- Senhor Bateman, a pessoa que escreveu isso nunca teve a menor ideia de onde ela iria chegar.

sábado, 15 de maio de 2010

Um punhado de pó - Evelyn Waugh


Eu acho que nem o fato deste livro ter sido escrito no século XX, sobre o século XX, serve para invalidar a afirmação de que os ingleses superam qualquer povo quando o assunto é pragmatismo -- inclusive quando se trata das suas mulheres e das relações extraconjugais que elas possam se divertir tendo. Comparando com o que eu conheço de livros dedicados ao assunto, Brenda Last foi a mulher que menos trabalho teve para descobrir que ela poderia, sem com isto fazer o mundo colapsar, quebrar o voto da fidelidade matrimonial. Emma Bovary, Anna Karenina, a Luísa não sei lá o quê do Primo Basílio, essas pobres não sabiam o que estavam fazendo. Elas se torturaram antes, durante e depois que o mal estava feito; tinham surtos de miséria. Quando não estavam ocupadas temendo o escândalo ou a possibilidade de serem separadas de seus filhos, estavam ocupadas tentando resistir, de início, às investidas dos cavalheiros que se apresentavam como candidatos a amantes. Brenda Last nem isso precisou fazer. Dos tipos no fundo mesquinhos e frívolos que os escritores criam para surgir na vida dessas mulheres (e digo no fundo porque eles sempre aparecem heróis no começo), John Beaver terá sido, dos que eu conheço, o mais deplorável e patético. Ele próprio se via assim. Ele próprio reconhecia que aproveitar o melhor da sociedade londrina era algo que ele só poderia fazer quando as migalhas lhe fossem atiradas de última hora, quando as mesas das festas precisassem ser preenchidas por alguém que não fizesse questão de ser razoavelmente antecipadamente notificado. Com a naturalidade de um serviçal ele ia atendendo aos convites e com a naturalidade de um serviçal ele acatou aos comandos do espírito emulativo de Brenda Last.

Também extremamente pragmático, por sua vez, Anthony Last recuperou, no final, alguns pontos que ele havia perdido como parte ofendida no triângulo amoroso. Eu literalmente vibrei, dando uns socos no ar, quando ele se levantou do restaurante e disse ao cunhado em quais termos ele iria reagir à tentativa de coerção que este último estava fazendo em nome da irmã traidora. Depois de se abandonar a John Beaver, que era um sujeito ridículo, Brenda ainda queria que Last pagasse uma pensão suficiente à sobrevivência fausta do futuro casal, porque Beaver, além de ridículo, era pobre e não trabalhava. O irmão dela havia se intrometido nessa briga e havia se encarregado de tornar real essa pretensão. Num almoço num clube ele e Last discutiram a situação. A Last foi proposto o pagamento de uma pensão exorbitante, sob a ameaça de que numa ação judicial a condenação seria conseguida: provas de um flagrante que o próprio Last tinha montado, contra ele mesmo, para favorecer Brenda, seriam usadas. Finalmente enraivecido com o caso, Last responde que não irá aceitar o acordo. Aproveita para dizer que as provas do flagrante serão devidamente desconsideradas no tribunal e que ele não vai dar nenhum tostão a quem quer que seja. Ali ele ganhou o meu respeito e me fez pensar em algum jogador de videogame que estivesse sofrendo uma pressão qualquer em algum jogo de disputa, e que num único momento conseguisse vencer o adversário, repentinamente, brutalmente, com um combo mirabolante e insano ou com um habilidoso headshot. Até então sendo provocado, ele largaria o controle do videogame como Anthony se levantou da mesa, desdenhando, e como Anthony saiu do restaurante, altivo, iria à cozinha e voltaria com um pacote de Pringles e um copo de Coca-Cola -- urrando alguns impropérios na cara do perdedor, relembrando cada detalhe de como foi sensacional a sua vitória e recusando-se a jogar uma nova partida para todo o sempre.

Na conta das lembranças prosaicas ficou, ainda, o teste de fidelidade do João Kléber. Num dado momento eu questionei o libertário que eu pensava existir dentro de mim, e eu senti que se eu estivesse sendo observado por uma plateia, muitos poderiam considerarar a minha conduta como sendo indiscreta. Imaginem, foi isso que eu fiz, que vocês tivessem atravessado o Atlântico numa pequena embarcação. Imaginem que vocês tivessem entrado nessa embarcação com um pouco mais do que um tênue senso de que vocês precisariam sair da Inglaterra a qualquer custo, e que uma expedição para a fronteira da Guiana Holandesa com o Brasil tivesse sido uma tola opção que, feita antes, agora vocês já não mais conseguissem evitar. Pois bem. Atravessado o Atlântico; feito o tresloucado desembarque no império dos mosquitos; contratada a suspeitíssima escolta dos índios macuxi para a condução até a terra dos índios vapixianas; caminhados, por fim, desorientadamente, quase os trezentos quilômetros de distância do trajeto; feito tudo isso, digamos que uma febre misteriosa lhe acometesse e que a única pesssoa branca que estava com você tivesse caído de uma cachoeira e desaparecido. Digamos que os índios macuxi tivessem abandonado a expedição com o medo de um rato de brinquedo comprado em Munique, e que, tendo sido deixado sozinho no meio da floresta amazônica, alguém aparecesse e lhe resgatasse. E agora vem o dilema: se essa pessoa, cuidando da sua enfermidade e te tratando com todos os recursos dela, tentasse impedir que você fizesse o caminho de volta pela floresta, e, ao contrário, te obrigasse a ficar lendo Charles Dickens todo dia, o que você faria? Foi esse o dilema. De um lado, toda a bibliografia de Charles Dickens à sua disposição. De outro lado, circunstâncias que não eram toda a bibliografia de Charles Dickens à sua disposição, entre elas a necessidade de sobreviver na floresta, passando o tempo sobrevivendo na floresta, sem ler toda a bibliografia de Charles Dickens. Até que ponto eu prezo a liberdade de só ler toda a bibliografia de Charles Dickens quando isso for a minha vontade? Que tipo de pessoa eu sou, foi o que eu me perguntei, inclonclusivamente.


A tradução deste livro foi feita pelo Diogo Mainardi, do que eu tomei conhecimento com felicidade. Um detalhe irrelevante que me fez gastar uns bons minutos pensando foi que ele decidiu não colocar um ponto depois dos pronomes de tratamento. Mr Last, Mrs Last. Mr Beaver. Mr Grant-Menzies. É assim que os nomes aparecem escritos. Se está certo ou não, se terá sido uma simples repetição do padrão encontrado no original, isso eu não sei. Os minutos que eu gastei pensando não se converteram em pesquisas gramaticais ou em consultas ao Google Books. Foram apenas minutos que eu gastei olhando para o teto em contemplação, num oblívio nirvânico, às vezes voltando algumas páginas e conferindo se o livro inteiro estava daquela maneira.

A minha cena predileta, que eu vou transcrever em parte mais abaixo, foi a do delírio febril do Tony Last. E isso exige que eu me explique, porque ter gostado dessa cena contrariou uma longa tradição que eu tenho respeitado ao longo da minha vida consciente. Cenas de delírio ou de sonho, desde Brás Cubas e desde uma vez em que um colega meu achou apropriado me contar um sonho que ele teve, no qual ele era Alex Kid, nunca são, pra mim, a melhor parte de uma leitura ou de uma conversa. Não chego nem a abrir uma exceção para os filmes do David Lynch porque nesse caso o critério falha na premissa, eu raramente tendo condições de saber e distinguir quais são as cena do sonho e quais são os poucos fragmentos reais e temporalmente lógicos. Mas o que me fez gostar da cena de delírio do Anthony Last foi como ela praticamente não descreveu colorações plúmbeas no céu, nem ruídos assustadores vindos do chão, nem essas coisas disformes e enfadonhas que costumam aparecer nessas horas. A cena do Anthony Last foi eminentemente narrativa, quase feita só de pessoas pronunciando palavras. Só para mostrar como o estilo é bom eu não preciso explicar todas as alusões aos eventos da história, eu acho, de modo que assim eu termino este post:

- Ordem - disse Polly Cockpurse. Proponho que Mr Last faça uso da palavra.
- Atenção, atenção.
- Senhoras e senhores - disse Tony. - Rogo-lhes que entendam que eu não posso sair dessa rede por estar doente. Dr Messinger passou instruções claríssimas a esse respeito.
- Winnie quer nadar.
- Não é permitido nadar no Brasil. Não é permitido nadar no Brasil.
A reunião assumiu o brado.
- Não é permitido nadar no Brasil.
- Mas você tomou dois cafés da manhã.
- Ordem - disse o prefeito. - Lord St Cloud, sugiro que o senhor leve a questão à votação.
- A questão é se o contrato para o alargamento do ângulo de Hetton Cross deve ser concedido a Mrs Beaver. De todos os orçamentos recebidos, o dela decididamente foi o mais caro, mas fui informado de que seu projeto inclui um muro de metal cromado na face sul da aldeia...
- ... e dois cafés da manhã - lembrou Winnie.
- ... e dois cafés da manhã para os homens encarregados do trabalho. Aqueles a favor da moção devem cacarejar como galinhas e aqueles que são contrários devem dizer au-au.
- Esse é um procedimento inteiramente impróprio - disse Reggie. - O que os empregados vão pensar?
- Precisamos fazer algo até que Brenda seja avisada.
- ... Eu? Eu estou bem.
- Então considero aprovada a moção.
- Estou muito contente que Mrs Beaver tenha conseguido o serviço - disse Brenda. - Estou apaixonada por John Beaver, estou apaixonada por John Beaver, estou apaixonada por John Beaver.
- É essa a decisão do comitê?
- Sim, ela está apaixonada por John Beaver.
- Então a moção foi aprovada por unanimidade.
- Não - disse Winnie. - Ele tomou dois cafés da manhã.
- ... por maioria absoluta.

Taking Woodstock - Ang Lee


Acho que é justo dizer que Taking Woodstock é menos um filme sobre os bastidores do festival hippie, menos até um filme sobre a família disfuncional do sujeito que ofereceu aos organizadores do festival hippie a sua licença municipal originalmente obtida para a apresentação de um quarteto de cordas, e mais um filme sobre a lama que ficou espalhada pela estradas e pelas encostas, sujando todos que passavam. Exagero, naturalmente, mas o que interessa afirmar é que um filme sobre bagunça não é um filme que precisa ser ruim.

Este que aparece no centro da foto, aliás, é mesmo o Demetri Martin. Ele é o sujeito da licença municipal. É o sujeito que sacrifica as ambições da sua vida pessoal para se isolar numa cidadezinha onde seus pais têm o que só pode ser o hotel/cassino/centro de bar mitzvah mais bagunçado dos registros. No meio dos hippies e dos judeus osso duro de roer, uns mais e outros menos mercantilistas bem-sucedidos do que se poderia imaginar, ele é um elemento fora do lugar. Dá para se lembrar dos sketches do Important Things, o Demetri Martin como um inepto social, quando ele caminha no meio da festa. Dá para se lembrar daqueles sketches, também, quando ele chega ao restaurante e o dono diz que não está disponível o prato usual que ele pede -- alguma coisa com bacon extra: "You're out of of the usual? Wow, that's unusual". Também quando a mãe dele exclama, aliviada ao ver o filho, que um cliente estava lhe ameaçando com um pedido de reembolso.

Um núcleo paralelo é o da companhia de teatro que está ficando no estábulo do hotel. Eu não conheço nenhuma companhia de teatro pessoalmente, mas conheço alguém que já esteve numa situação quase tão próxima a uma como a do personagem do filme, e sei que num caso desses, ou a pessoa mentaliza coisas absurdas e que distraem, preferencialmente com um fone no ouvido, ou então ela foge do lugar, na chuva.

Liev Schreiber está no elenco e eu acabei de me lembrar do primeiro filme que eu vi com ele, o que desde então tem servido como referência quando eu ouço esse nome: The Daytrippers.

domingo, 2 de maio de 2010

Inglourious Basterds - Quentin Tarantino


É mais fácil, eu imagino, alguém me recriminar por contar partes essenciais do filme, o que de fato eu faço linhas abaixo, do que me acusar de afeição ao nazismo, o que de forma alguma eu tenho. Mas eu faço questão de me escusar antecipadamente e de afirmar que o que eu direi de forma alguma teve a intenção de mostrar simpatia ao brutal regime totalitário. Gostei de um personagem - somente um personagem, veja-se -, partidário, e por isso eu aceitaria alguma reprimenda, se esta obra de ficção - obra de ficção, veja-se - não fosse, ela própria, uma forma de celebração da violência, naquilo que ela pode ter de engraçada. Sendo certo que a violência pode ser engraçada, em termos de cinema, mas também um ponto negativo no escore final da personalidade ou conduta de alguém, seria muito mais condenável simpatizar com o truculento personagem do Brad Pitt, por exemplo, do que meio que torcer - foi o que eu fiz - para o personagem do oficial nazista exótico. No final das contas eu simpatizei com o personagem do Brad Pitt e realmente meio que torci para o Coronel. Eu sabia que alguma coisa no roteiro justificaria a minha torcida e só posso pedir desculpas, bem sinceras, se alguém se ofender com isso -- com o fato de que eu talvez tenha ultrapassado o limite aceitável e que pode ser tolerado quando alguém vai falar de Segunda Guerra.

Dito isso, volto para o parágrafo que eu estava escrevendo.

Como diria Enéas, eu sou um sujeito de poucas luzes. Em matéria de filmes isso não é diferente. Não sou um bom entendedor de filmes, e muito menos expresso bem as poucas noções corretas que às vezes eu consigo formular sobre eles. O único momento de sorte que eu tive, e já enfatizo desde logo que se tratou de um momento de sorte mesmo, foi assistindo a Jogos Mortais. Na primeira cena do filme eu descobri quem era o assassino, porque o sujeito que estava deitado no porão, supostamente morto, não tinha uma fita no gravador. Isso era o que todo mundo tinha, e se aquele sujeito era diferente, iluminadamente eu concluí que ele era o matador. Acho que um momento de sorte parecido aconteceu com este Inglourious Basterds, embora em medida alguma ele possa ser atribuído a uma espécie de percepção que tenha tido, como no caso Jogos Mortais. O que aconteceu aqui foi a pura e natural empatia que eu tive por uma pessoa me levando a torcer, ao longo do filme, por alguém que iria acabar fazendo alguma coisa legal. Talvez esse episódio tenha sido menos raro do que a descoberta instantânea de quem era o assassino lá daquele outro filme. Acho mesmo que deliberadamente o Coronel Hans Landa foi criado de uma forma tal que nós gostássemos dele desde o primeiro momento. Foi o que aconteceu comigo, em todo caso. Gostei dele se esforçando para falar francês, dele pedindo leite e fingindo que não iria fuzilar aquela família. Acho que em toda a história do nazismo cinematográfico, só Schindler mesmo para não despertar o ódio instintivo e visceral. E ele nem era oficial. Mas Schindler e 0 Coronel Landa, eu acrescento. Não por acaso, mais tarde esse último emboscaria oficiais nazistas e permitiria a realização da fantasia maior que se você não adquiriu lendo livros de história, você adquiriu jogando Medal of Honor: metralhar nazistas encurralados.

Se vale alguma coisa, ou se alguma coisa mais precisa ser dita, o Frederick Zoller, que por um tempo poderia se passar por apenas um garoto alemão cumprindo as leis de seu país, se alistando no exército e sendo basicamente um soldado, dele eu não gostei de imediato. E não viria a gostar nunca. O motivo é o mesmo que Shossana diz, na cena do café, e efetivamente ninguém tem o direito de ser criança o suficiente para negar a sua pertinência: o sujeito representava o ocupador.

O que me levou a gostar do Coronel Landa, eu acho, foi um pouco do que se poderia chamar de Indicador Costanza. Estou tentando parar de ficar dizendo nomes neste post, mas o Indicador Costanza eu não não posso evitar, pois foi exatamente por causa dele que surgiu em mim a torcida de que eu tenho falado e que obviamente me incomodou um pouco (basta ver a minha verborrágica insistência em tratar dela). O Indicador Costanza, em resumo, se refere ao talento que o George uma vez declarou como sendo o único que ele tinha, o talento de dizer se alguém estava desconfortável numa festa. Para mim o Coronel Landa seria detectado pelo Indicador Costanza se em vez de uma festa nós estivéssemos falando de toda a movimentação beligerante na Europa. George diria que ele não estava muito à vontade com a coisa toda e foi pensando também isso que eu fiquei interessado em ver como ele iria se comportar. Soldados nazistas frequetemente são retratados em filmes nos seus conflitos de consciência, nos seus questionamentos e nas suas fraquezas perante a ordem totalitária. Não é disso, porém, que estou falando. Não é esse o que eu acho que seja o caso do Coronel. O desconforto que se percebe nele está nos seus próprios trejeitos, no modo como se senta e no modo como fala. Sempre ele espera pela final e inegável confirmação, da parte de um suspeito, quando ele está interrogando algum inimigo do Estado. Ele não se precipita, não força uma confissão. Que inseguro oficial nazista, por exemplo, tomaria o cuidado e teria a paciência de esperar a mulher suspeita de participar da chacina de soldados colocar o seu pé à prova num sapato que por acaso ficou largado na cena do crime? Só o Coronel. Só o Coronel, nessa ocasião, pediria para que ela estendesse a perna e ficaria dando tapinhas impacientes nas suas coxas.

Procurando alguma foto dele para colocar neste post, vejo a pletora de comentários e mesmo o anúncio que o Tarantino fez de que o Coronel é o melhor personagem que ele já escreveu. Quase me inclino a dizer que Stuntmam Mike é quem merece este título, mas falar isso não é algo que eu estou conseguindo fazer neste momento.


A Sociedade do Anel - J.R.R Tolkien/Peter Jackson

Ouço dizer, da boca de dois amigos que já leram o livro, que não é regra absoluta a pessoa tentar encontrar um ritmo para cantar as antigas canções que aparecem em verso. Eu não poderia ter ficado mais espantado com essa afirmação, pois achava que era justamente esta a coisa que me aproximava de todos os leitores que pelos tempos conheceram o livro: ficarmos, um pouco bobos, nos divertindo com as nossas tentativas de cantar as palavras numa determinada ordem musical que fosse correta e agradável aos ouvidos, como deve ser uma boa composição. Mas não. Eles me juraram que eles nunca tinham feito aquilo, quando eu perguntei se eles também ficavam quebrando a cabeça para encaixar as palavras numa melodia imaginária. Sustentaram que eu devo ser uma das poucas pessoas na história que se ocuparam disso, esquecendo-se até mesmo de ninguém menos que Peter Jackson, que colocou no filme uma cantoria etilicamente movida (logo no início, ainda no Condado), além de umas lamúrias cantaroladas ao redor da fogueira (Passolargo, sobre a guria que abandonou a imortalidade élfica pelo amor de um homem).

Tão irredutíveis eles se mostraram nesse ponto, vejam, que eu nem perguntei se eles não se imaginavam segurando enormes copos de cerveja, em tavernas pouco sanitárias e em madeiras lascadas, a gritaria geral desorganizada convergindo para um refrão conhecido toda vez que eu me levanto e, no limite da minha voz, faço uma exortação para que uma passagem já mil vezes repetida naquela noite seja mais uma vez repetida. E nego que estou severamente alcoolizado gritando ainda mais alto, e fazendo movimentos de regência com as minhas mãos, esvaziando o copo na minha boca. E digo familiarmente ao dono da taverna para trazer mais uma garrafa, antes de cair, ridículo, no chão.

Mais ou menos o que acontece no próprio filme, numa palavra. O que me fez lembrar deste antigo post do Pedro Sette-Câmara, que deixo como a explicação do enredo:


Samba-enredo do Senhor dos Anéis (seguindo a maneira de cantar dos puxadores, o leitor deve desconsiderar várias elisões)


Olha a União do Condado aí gente! Chora cavaco! Alô Terra Média!

Foi no reino de Mordor
que Sauron criou o anel
que espalhou tamanha dor
antes de se perder
Mas um dia – mas, um dia! –
quem não queria aventura
só viver na fantasia
conheceu toda a loucura
do anel e seu poder

Frodo (Frodo!)
Era um hobbit fascinante
de um paraíso distante
cheio de alegria e amor
Um belo dia descobriu
aquele anel do tio Bilbo
e foi assim que tudo começou

Refrão 2x

Vou salvar o mundo, eu vou
Acabar com o reino de Mordor
Destruir os orcs, sem temor
Agora a aventura me encontrou

Aragorn é cavaleiro
Grande rei da raça humana
Legolas, o elfo arqueiro
Sempre com tiros certeiros
Traço do povo imortal
Gimli é seu forte companheiro
Um anão nada ligeiro
Mas com poder descomunal

Uma sombra segue os hobbits
Como eles foi um dia
Será Gollum, será Sméagol
Mas o nome não importa
A criatura horripilante
Completamente delirante
Somente pensa no anel

Refrão ad nauseam


E já que eu não vou escrever qualquer coisa sobre a própria história, ou sobre a minha experiência mística lendo o livro, ou sobre a grande admiração que eu consolidei pelo estilo do Tolkien, fica mais um conhecido link de zombaria:





***




Terminei de ler o livro para rever o filme. Rever, em geral; e assistir pela primeira vez às cenas que fazem parte da versão estendida, a qual baixei, pela bagatela de 7 giga, na versão 1080 de resolução. Constatei que essa resolução, mesmo numa televisão moderna, pouca diferença faz para um filme que, acho, originalmente não foi filmado no padrão atual. A diferença que eu percebi foi tão insignificante, na verdade, que as duas outras partes da trilogia eu baixei no primeiro formato que eu encontrei: o bom e velho DVDRip de confiança.

domingo, 25 de abril de 2010

The Front - Martin Ritt

Assisti a este filme tomado por um sentimento de nostalgia, reavivando no meu coração velhos ímpetos de ser um conspirador. Sabem, alguém muito convicto de uma proposição qualquer e disposto a eliminar por ardis, ao menos no plano intelectual, quem quer que a ela se oponha. Ultimamente, a minha ideia é investir na carreira de conspirador no mundo dos comentadores de vídeos no Youtube.

Queria entrar em várias discussões que hoje são conduzidas para se decidir se algumas versões de covers são melhores que outras, sustentando a minha opinião e diligenciando para que quem não concordasse comigo fosse banido. Com a dose certa de insídia da minha parte, acho que as pessoas envolvidas poderiam facilmente ser levadas a um estado de confusão desagregadora, e no final restaria a minha opinião como a líder do debate.

Eu gostaria de fazer exatamente o que o personagem do Woody Allen fez quando ele foi, sob falsas premissas, homenageado numa escola. Acreditavam os professores que estavam fazendo a homenagem que ele era um grande escritor, talentoso e profícuo, que poderia servir de exemplo para os alunos. Mas a história inteira do filme, apresentada logo no início, é a de que ele apenas emprestava o seu nome para alguns escritores que tinham entrado na lista negra do comunismo e que por isso não conseguiam trabalhar como roteiristas para televisão. Com uma enorme desfaçatez ele faz umas poses para as crianças, saúda a plateia e balança um canudinho recebido. Masca um chiclete com uma expressão de tranquilidade. A meu turno, o que eu faria seria entrar naquelas discussões do Youtube fingindo pleno conhecimento das músicas em questão, inventando circunstâncias, por exemplo, que pudessem ser atribuídas à gravação original e ao cover.

- It's Ok, do Dead Moon e a versão tocada em shows do Pearl Jam: Ah, seus ignorantes, o tom que o Pearl Jam usa é simplesmente o tom original. O Dead Moon é que estragou a música. O baixista do Dead Moon era amigo do Ed Vedder. Eles compuseram a música juntos, numas férias que o baixista passou em Seattle. Depois a banda aproveitou o material, só que o idiota do vocalista não conseguia cantar no tom certo. Daí eles mudaram. A música foi pensada para ter o Ed Vedder cantando do jeito que depois o Pearl Jam veio a tocar em shows. Então é melhor calar a boca quem não sabe do que está falando, que o Dead Moon, do jeito que o vocalista cantava, estragou a música! Ed Vedder é o melhor!

- Taxman, dos Beatles, também tocada pelo Steve Ray Vaughan e pelo Black Oak Arkansas. O quê?? A redenção dessa do contrário ridícula música pop foi a verão em southern rock do SRV? Ah, isso só mostra o quão pouco você sabe de southern rock, animal. Se alguma salvação existe para essa música, o responsável foi o BOA. Eu vi os caras ao vivo e posso dizer o que é uma plateia indo ao delírio. Aquilo sim era guitarra! Sem exageros preciosistas do do SRV e sem aquela chocante falta de virilidade do George Harrison. Aliás, o Paul McCartney mesmo já disse que a música só entrou no disco porque o GH deu uns chiliques e começou a chorar dentro do estúdio. E todo mundo sabe que o SRV só gravou essa música porque a gravadora estava fazendo pressão, que ele tinha bebido e injetado todos os dólares que o disco anterior tinha conseguido.

 
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